sábado, 22 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XVII


Hoje, Sebastião da Gama


Nasci para ser ignorante 
mas os parentes teimaram 
(e dali não arrancaram) 
em fazer de mim estudante.

Que remédio? Obedeci. 
Há já três lustros que estudo. 
Aprender, aprendi tudo, 
mas tudo desaprendi.

Perdi o nome às Estrelas, 
aos nossos rios e aos de fora. 
Confundo fauna com flora. 
Atrapalham-me as parcelas.

Mas passo dias inteiros 
a ver um rio passar. 
Com aves e ondas do Mar 
tenho amores verdadeiros.

Rebrilha sempre uma Estrela 
por sobre o meu parapeito; 
pois não sou eu que me deito 
sem ter falado com ela.

Conheço mais de mil flores. 
Elas conhecem-me a mim. 
Só não sei como em latim 
as crismaram os doutores.

No entanto sou promovido, 
mal haja lugar aberto, 
a mestre: julgam-me esperto, 
inteligente e sabido.

O pior é se um director 
espreita p'la fechadura: 
lá se vai licenciatura 
se ouve as lições do doutor.

Lá se vai o ordenado 
de tuta-e-meia por mês. 
Lá fico eu de uma vez 
um Poeta desempregado.

Se me não lograr o fado 
porém, com tais directores, 
e de rios, aves e flores 
somente for vigiado,

enquanto as aulas correrem 
não sentirei calafrios, 
que flores, aves e rios 
ignorante é que me querem."



Sebastião da Gama in “Cabo da Boa Esperança” 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XVI

Hoje, Ruy Belo

Elogio da Amada


Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida 
secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados 
Vem sentada na nova primavera 
cercada de sorrisos no regaço lírios 
olhos feitos de sombra de vento e de momento 
alheia a estes dias que eu nunca consigo 
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso 
começa para além dela a ser longe 
A amada é bem a infância que vem ter comigo 
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos 
e mortes como antes nunca mais 
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria 
no limiar da nossa indiferença 
Os nossos átrios são para os seus pés solitários 
Já todos nós esquecemos a casa dos pais 
ela enche de dias as nossas mãos vazias 
A dor é nela até que deus começa 
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor 
Que importa sermos de uma só manhã e não haver em volta 
árvore mais açoitada pelos diversos ventos? 
Que importa partirmos num desmoronar de poentes? 
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão 
multiplicando-lhe a ausência que importa 
se onde pomos os pés é primavera? 


Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

quinta-feira, 20 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XV


Hoje, António Quadros

ODE AO DESEJO 


Desejo,
Desejo de outrem que não eu.
Caminho pela cidade nevoenta
E tudo é um reflexo abominável de mim.
Aquele homem apressado cruzando uma praça,
aquele garoto chorando com a cara entre as mãos,
aquele jovem gesticulando, veemente…
Tudo é eu num espelho deformado,
todo o universo é um sarcasmo,
a chuva goteja trágicas gargalhadas,
estou só,
sou só,
só dentro da imensa solidão,
só, ilha sem mar,
só, ilha sem continentes do outro lado do mar,
só, ilha sem naus que não levariam a parte alguma,
inútil,
estéril,
irreconhecível sem o espelho
inconcebível de uns olhos, outros,
apenas pressentidos.

É preciso,
é absolutamente necessário inventar uma presença,
é preciso imitar,
ó ardência, ó ímpeto, ó desejo,
é preciso imitar Deus e criar
ó desejo,
outrem que não eu fora de mim,
outro ser
diferente atraente ardente
que me faça quebrar o círculo fatal,
que me fale com outro silêncio,
que me conforte por ser apenas o sinal
de que a palavra ilha é uma abstracção,
outro ser que receba, ó desejo,
a força e o frémito e a substância e a vida
e o acto
que há em mim
e assim me cumpra enfim
não Deus mas criador
no êxtase pressentido do amor,
no fruir conceber ser,
na cisão legítima que te peço,
ó desejo,
ó verbo,
na enigmática cisão,
mãe da união
de todo o morrer e renascer.


in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 12-13.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XIV

Por hoje ser dia do Pai, fica um poema de Florbela

"Ter um Pai

Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!

Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!

Ter um Pai! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;

Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado!

Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!

Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!

Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!

Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!”"

Florbela Espanca in Poesia 1918-1930

terça-feira, 18 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - XIII


Hoje, Pedro Homem de Mello

"Canção à AusentePara te amar ensaiei os meus lábios... 
Deixei de pronunciar palavras duras. 
Para te amar ensaiei os meus lábios! 

Para tocar-te ensaiei os meus dedos... 
Banhei-os na água límpida das fontes. 
Para tocar-te ensaiei os meus dedos! 

Para te ouvir ensaiei meus ouvidos! 
Pus-me a escutar as vozes do silêncio... 
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos! 

E a vida foi passando, foi passando... 
E, à força de esperar a tua vinda, 
De cada braço fiz mudo cipreste. 

A vida foi passando, foi passando... 
E nunca mais vieste! "

Pedro Homem de Mello, in "Segredo"

segunda-feira, 17 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XII


Hoje, Olavo Bilac

"Velhas ÁrvoresOlha estas velhas árvores, mais belas 
Do que as árvores novas, mais amigas: 
Tanto mais belas quanto mais antigas, 
Vencedoras da idade e das procelas... 

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas 
Vivem, livres de fomes e fadigas; 
E em seus galhos abrigam-se as cantigas 
E os amores das aves tagarelas. 

Não choremos, amigo, a mocidade! 
Envelheçamos rindo! envelheçamos 
Como as árvores fortes envelhecem: 

Na glória da alegria e da bondade, 
Agasalhando os pássaros nos ramos, 
Dando sombra e consolo aos que padecem!" 

Olavo Bilac, in "Poesias"

domingo, 16 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - XI

Hoje,  Natália Correia


De Amor nada Mais Resta que um OutubroDe amor nada mais resta que um Outubro 
e quanto mais amada mais desisto: 
quanto mais tu me despes mais me cubro 
e quanto mais me escondo mais me avisto. 

E sei que mais te enleio e te deslumbro 
porque se mais me ofusco mais existo. 
Por dentro me ilumino, sol oculto, 
por fora te ajoelho, corpo místico. 

Não me acordes. Estou morta na quermesse 
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie 
nem teus zelos amantes a demovem. 

Mas quanto mais em nuvem me desfaço 
mais de terra e de fogo é o abraço 
com que na carne queres reter-me jovem. 
Natália Correia, in “Poesia Completa”