segunda-feira, 10 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - VI


Hoje, um poema de Fernando Pessoa ou, melhor, do seu heterónimo Álvaro de Campos

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondívelmente parasita,
Indesculpávelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infâme da vileza.
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

2 comentários:

  1. Olá, António!

    Ah...este poema em linha recta! Publiquei-o numa altura em que me sentia farta de uma pessoa que parecia dona do mundo! Farta de semideuses! De gente que parecia perfeita em tudo! Verdade!:)

    Álvaro de Campos, o mais controverso heterónimo de F.P.

    Este poema chega a morder-nos de tanta crueza. Digo eu, que só sei que nada sei! :))

    " A arte é força imanente,
    não se ensina, não se aprende,
    não se compra, não se vende,
    nasce e morre com a gente...."

    É isso que está a pensar! :) A arte não veio a correr e, assim, trouxe comigo o meu poeta popular preferido: António Aleixo!..

    Um beijo e um abraço.

    Janita

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  2. Janita, boa noite,
    Parece ter havido transmissão de pensamentos. Na verdade, publiquei este poema pela sua força, pela sua crueza, pela coragem de quem o escreveu. E, também, por me parecer que, atendendo a certa gentinha que por aí anda, é de uma actualidade tremenda. Por certo, haverá alguma que ao lê-lo, se sentirá incomodada.
    Já agora, despeço-me com uma quadra do seu preferido:

    "Eu não tenho vistas largas,
    Nem grande sabedoria,
    Mas dão-me as horas amargas
    Lições de filosofia."

    Um beijo e um abraço,
    António

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