sábado, 8 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - IV

Hoje, dia internacional da Mulher, um poema de David Mourão-Ferreira: 

"Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol, 
que é feito de ternura amarrotada, 
da frescura que vem depois do sol, 
quando depois do sol não vem mais nada... 

Olho a roupa no chão: que tempestade! 
Há restos de ternura pelo meio, 
como vultos perdidos na cidade 
onde uma tempestade sobreveio... 

Começas a vestir-te, lentamente, 
e é ternura também que vou vestindo, 
para enfrentar lá fora aquela gente 
que da nossa ternura anda sorrindo... 

Mas ninguém sonha a pressa com que nós 
a despimos assim que estamos sós! "

David Mourão-Ferreira, in "Infinito Pessoal"




sexta-feira, 7 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - III


Mais um dia, mais um poema. Carlos Drummond de Andrade... 



Para SemprePor que Deus permite 
que as mães vão-se embora? 
Mãe não tem limite, 
é tempo sem hora, 
luz que não apaga 
quando sopra o vento 
e chuva desaba, 
veludo escondido 
na pele enrugada, 
água pura, ar puro, 
puro pensamento. 
Morrer acontece 
com o que é breve e passa 
sem deixar vestígio. 
Mãe, na sua graça, 
é eternidade. 
Por que Deus se lembra 
— mistério profundo — 
de tirá-la um dia? 
Fosse eu Rei do Mundo, 
baixava uma lei: 
Mãe não morre nunca, 
mãe ficará sempre 
junto de seu filho 
e ele, velho embora, 
será pequenino 
feito grão de milho. 

Carlos Drummond de Andrade, in 'Lição de Coisas'

quinta-feira, 6 de março de 2014


Senso comum


O texto abaixo foi publicado, assim me disseram, no 'Times'. Aqui o deixo por me parecer algo que nos faz pensar. Peço desculpa por não apresentar o texto em Português mas, a minha tradução, por certo, o desvirtuaria um pouco.


"Today we mourn the passing of a beloved old friend, Common Sense, who has been with us for many years. No one knows for sure how old he was, since his birth records were long ago lost in bureaucratic red tape. He will be remembered as having cultivated such valuable lessons as:

- Knowing when to come in out of the rain;
- Why the early bird gets the worm;
- Life isn't always fair;
 And maybe it was my fault.

Common Sense lived by simple, sound financial policies (don't spend more than you can earn) and reliable strategies (adults, not children, are in charge). His health began to deteriorate rapidly when well-intentioned but overbearing regulations were set in place. Reports of a 6-year-old boy charged with sexual harassment for kissing a classmate; teens suspended from school for using mouthwash after lunch; and a teacher fired for reprimanding an unruly student, only worsened his condition.
Common Sense lost ground when parents attacked teachers for doing the job that they themselves had failed to do in disciplining their unruly children.
It declined even further when schools were required to get parental consent to administer sun lotion or an aspirin to a student; but could not inform parents when a student became pregnant and wanted to have an abortion.
Common Sense lost the will to live as the churches became businesses; and criminals received better treatment than their victims.
Common Sense took a beating when you couldn't defend yourself from a burglar in your own home and the burglar could sue you for assault.
Common Sense finally gave up the will to live, after a woman failed to realize that a steaming cup of coffee was hot. She spilled a little in her lap, and was promptly awarded a huge settlement.

Common Sense was preceded in death,

  -by his parents, Truth and Trust,
  -by his wife, Discretion,
  -by his daughter, Responsibility,
  -and by his son, Reason.


He is survived by his 5 stepbrothers;

- I Know My Rights
- I Want It Now
- Someone Else Is To Blame
- I'm A Victim
- Pay me for Doing Nothing"


Um poeta e um poema por dia - II

O prometido, é devido... Hoje Bocage.

"O Leão e o PorcoO rei dos animais, o rugidor leão, 
Com o porco engraçou, não sei por que razão. 
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna 
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna): 
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes, 
Poder de despachar os brutos pretendentes, 
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça, 
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça; 
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar, 
E a sua ocupação dormir, comer, fossar. 
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria, 
Soltavam contra ele injúria sobre injúria 
Os outros animais, dizendo-lhe com ira: 
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!» 
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais, 
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais! 
Dos filhos para o génio olhai com madureza; 
Não há poder algum que mude a natureza: 
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos 
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos. "

Bocage, in 'Fábulas'

quarta-feira, 5 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - I

A partir de hoje, se for capaz, deixarei aqui um poema. Vou começar com António Botto:


"Quem não Ama não Vive

Já na minha alma se apagam 
As alegrias que eu tive; 
Só quem ama tem tristezas, 
Mas quem não ama não vive. 

Andam pétalas e fôlhas 
Bailando no ár sombrío; 
E as lágrimas, dos meus olhos, 
Vão correndo ao desafio. 

Em tudo vejo Saudades! 
A terra parece mórta. 
- Ó vento que tudo lévas, 
Não venhas á minha pórta! 

E as minhas rosas vermelhas, 
As rosas, no meu jardim, 
Parecem, assim cahidas, 
Restos de um grande festim! 

Meu coração desgraçado, 
Bebe ainda mais licôr! 
- Que importa morrer amando, 
Que importa morrer d'amôr! 

E vem ouvir bem-amado 
Senhor que eu nunca mais vi: 
- Morro mas levo commigo 
Alguma cousa de ti. "

António Botto, in 'Canções'

terça-feira, 4 de março de 2014

Carnaval...

Neste dia de Carnaval, lembrei-me de vos deixar este soneto.

"Soneto de CarnavalDistante o meu amor, se me afigura 
O amor como um patético tormento 
Pensar nele é morrer de desventura 
Não pensar é matar meu pensamento. 

Seu mais doce desejo se amargura 
Todo o instante perdido é um sofrimento 
Cada beijo lembrado é uma tortura 
Um ciúme do próprio ciumento. 

E vivemos partindo, ela de mim 
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos 
Para a grande partida que há no fim 

De toda a vida e todo o amor humanos: 
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo 
Que se um fica o outro parte a redimi-lo. "

Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'
Soneto à parte, espero que, na medida do possível, se  tenham divertido...