quarta-feira, 26 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XXI


Hoje, Waldemar Lopes

"Soneto das Nuvens e da Brisa

Os pássaros nostálgicos... Errantes
mágicos do crepúsculo, soprando
das longas asas trêmulas o brando
vento da tarde; e logo, em céus cambiantes,

alvos blocos de pluma vão distantes
e efêmeras imagens modelando:
sereias e hipocampos, entre o bando
de carneiros, e rosas, e elefantes,

cães e estrelas, dragões, ou aguçadas
torres, na superfície roseoviva
por onde voga, acesa, a caravela

e as longas asas captam, retesadas,
a poesia da tarde, fugitiva,
mas eterna no instante em que foi bela."

terça-feira, 25 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XX

Hoje, Vitorino Nemésio

"Teu Só Sossego aqui Contigo AusenteTeu só sossego aqui contigo ausente 
Na casa que te veste à justa de paredes, 
Tenho-te em móveis, nos perfumes, na semente 
Dos cuidados que deixas ao partir, 
A doce estância toda povoada 
Dos mínimos sinais, dos sapatos de plinto 
Que te elevam, Terpsícore ou Mnemósine, 
Como uma estátua fiel ao labirinto. 
Aqui, androceu da flor, o cálice abre aromas, 
Farmácia chamo à tua colecção de vidros 
Onde, à margem de planos e de somas, 
Tenho remédio para os meus alvidros. 
O chá é forte e adstringente, 
O leite grosso sabe à ordenha, 
E até nos quadros vive gente 
À espera que a dona venha. 
Porque tudo nos tectos é coroa, 
No chão as traînes, os passinhos salpicados 
Como o vento ainda longe de Lisboa 
Escolheu a gaivota do balanço 
Que no cais engolfado melhor voa: 
Um vácuo, enfim, que o não será — tão logo 
Chegues no ar medido e a aço propulso: 
Por isso um pouco de fogo 
Bate sanguíneo em meu pulso, 
Pois o amor de quem espera 
É uma graça a vencer. 
Uma casa sem hera 
É como gente sem viver." 

Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"

segunda-feira, 24 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XIX

Hoje, Vasco da Graça Moura

"insinceridadequis-nos aos dois enlaçados 
meu amor ao lusco-fusco 
mas sem saber o que busco: 
há poentes desolados 
e o vento às vezes é brusco 

nem o cheiro a maresia 
a rebate nas marés 
na costa de lés a lés 
mais tempo nos duraria 
do que a espuma a nossos pés 

a vida no sol-poente 
fica assim num triste enleio 
entre melindre e receio 
de que a sombra se acrescente 
e nós perdidos no meio 

sem perdão e sem disfarce, 
sem deixar uma pegada 
por sobre a areia molhada, 
a ver o dia apagar-se 
e a noite feita de nada 

por isso afinal não quero 
ir contigo ao lusco-fusco, 
meu amor, nem é sincero 
fingir eu que assim te espero, 
sem saber bem o que busco." 


Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

domingo, 23 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - XVIII


Hoje, Trindade Coelho

"Aos Juristas
Irmãos da Confraria das Latada


E Reitor da irmandade das Latadas:
Pra maior esplendor da procissão
Mando que este ano sejam observadas
As regras que em seguida escritas vão:

Em primeiro lugar a Academia

Ceará mais cedinho neste dia.

De modo que na Feira às nove em ponto
Tudo esteja disposto, armado e pronto.

Quando houver poviléu suficiente
Parte o préstito logo em-continente.

As ruas que percorre no trajecto

Vão em prosa no fundo do prospecto.

E tudo muito sério, sem desordem.

Há-de então desfilar por esta ordem:

– Vai na frente, com certo intervalo, 

O grã’Jaime  montado num cavalo.

E uma audaz guarnição pretoriana

Com broquéis de cortiça e armas de cana.

Depois alguns irmãos com barretinas"


Trindade Coelho in "in Illo Tempore"