domingo, 4 de maio de 2014

Mãe... Mãe...
Saudade... Saudade...


"Mãe
(palavra tão querida)
É flor,
que se colhe na Vida "

domingo, 27 de abril de 2014

Descanse em Paz ...

A minha homenagem, bem singela, a um enorme nome da nossa Cultura, Vasco da Graça Moura...

"espaço interiorquando o poema 
são restos do naufrágio 
do espaço interior 
numa furtiva luz 
desesperada, 

resvalando até 
à superfície, 
lisa, firme, compacta, 
das coisas que todos 
os dias agarramos, 

quando 
o poema as envolve 
numa aura verbal 
e se incorpora nelas, 
ou são elas a impor-lhe 

a sua metafísica 
e o espaço exterior 
que povoam de 
temporalidades eriçadas, 
luzes cruas, sons ínfimos, poeiras. "


Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

sexta-feira, 18 de abril de 2014


Desejos de 

Adiós, Gabriel...
Requiescat in pace.

“Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem de minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do Zodíaco.”


Gabriel García Marquez in “Memórias das Minhas Putas Tristes”

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Memórias de leituras...

Espero que gostem...

"A caminho daqui vi coisas maravilhosas para pintar, mas nunca soube pintar. Sei de coisas maravilhosas para escrever e nem sequer consigo escrever uma carta que não seja estúpida. Nunca quis ser pintora nem escritora até chegar a este país. Agora, é como estar-se sempre esfomeado e não haver maneira de o remediar."
....

"Chovera copiosamente e o tempo arrefecera. Encontravam-se na penumbra fresca e abrigada do quarto enorme do Palace, onde tinham tomado banho na água profunda da banheira e depois tinham retirado a tampa e a água escorrera com toda a força, molhando-os. Esfregaram-se mútuamente com os toalhões e depois foram para  a cama. Ali, corria uma brisa fresca que entrava por entre as frestas das persianas. Catherine estava apoiada nos cotovelos e tinha o queixo sobre as mãos."     

Ernest Hemingway in "O Jardim do Éden"

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Pensamento...

“Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la. Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que se quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas.
O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e as decepções do passado.
A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar porque um belo dia se morre.”



quarta-feira, 2 de abril de 2014

Para acabar com estas jornadas de poemas e poetas, deixo um poema de Trindade Coelho:


"PARÓDIA AOS LUSÍADAS

Os grandes paspalhões assinalados, 

Que nas reuniões da Academia 
Foram solenemente apepinados 
Por sua telha ou sua fidalguia, 
Que nas guerras das mocas esforçados 
Mais do que a força humana permitia 
No Teatro Académico asnearam 
Tolices de que todos se espantaram;

E também as façanhas gloriosas 

Dos Cabrais e Waldecks e quejandos, 
Que à noite, com as vozes mais fanhosas, 
andam o nível a pedir em bandos; 
E as diabólicas fúrias deliciosas 
De certos quintanistas memorandos, 
Cantando espalharei por toda a parte. 
Há-de-se rir o mundo até que farte.

Ó musa da ironia e da arruaça, 

Que tens excepcionais o gesto e o peito, 
Vira-te para mim e põe-te a jeito 
De inspirar um poema de chalaça; 
Quero um poema esplêndido, perfeito, 
Que vos celebre e que subir vos faça, 
Num pulo só, da glória à mor altura, 
Cavaleiros da mais triste figura!

Haviam sido há pouco apepinados 

Os meus heróis, que andavam murmurando 
Que na Trindade ou para aqueles lados 
Se estava contra eles conspirando, 
Quando uma noite andando endiabrados 
Pela Feira sobre isto conversando, 
Uma moca que os ares escurece 
Sobre as suas cabeças aparece.

Viu-se o Waldeck! Vinha carregado 

Com a moca que pôs a todos medo. 
"Ai rapazes!, bradou, venho estafado 
Qual se trouxesse às costas um rochedo! 
Deixai-me descansar só um bocado 
Para depois contar-vos um segredo." 
E diziam os outros: "Co'esta moca 
'Stamos seguros, pois ninguém nos toca."

Trindade Coelho "in illo tempore" 


terça-feira, 1 de abril de 2014



No dia de hoje - dizem que das mentiras - este soneto:


"Mentiras
"Ai quem me dera uma feliz mentira
que fosse uma verdade para mim!"

J. Dantas
Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar pousa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito meu?
Ai, se o sei, meu amor! Em bem distingo
O bom sonho da feroz realidade…
Não palpita d´amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!
Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais
O gelo do teu peito de granito…
Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!"
Florbela Espanca - in "A mensageira das violetas"

quarta-feira, 26 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XXI


Hoje, Waldemar Lopes

"Soneto das Nuvens e da Brisa

Os pássaros nostálgicos... Errantes
mágicos do crepúsculo, soprando
das longas asas trêmulas o brando
vento da tarde; e logo, em céus cambiantes,

alvos blocos de pluma vão distantes
e efêmeras imagens modelando:
sereias e hipocampos, entre o bando
de carneiros, e rosas, e elefantes,

cães e estrelas, dragões, ou aguçadas
torres, na superfície roseoviva
por onde voga, acesa, a caravela

e as longas asas captam, retesadas,
a poesia da tarde, fugitiva,
mas eterna no instante em que foi bela."

terça-feira, 25 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XX

Hoje, Vitorino Nemésio

"Teu Só Sossego aqui Contigo AusenteTeu só sossego aqui contigo ausente 
Na casa que te veste à justa de paredes, 
Tenho-te em móveis, nos perfumes, na semente 
Dos cuidados que deixas ao partir, 
A doce estância toda povoada 
Dos mínimos sinais, dos sapatos de plinto 
Que te elevam, Terpsícore ou Mnemósine, 
Como uma estátua fiel ao labirinto. 
Aqui, androceu da flor, o cálice abre aromas, 
Farmácia chamo à tua colecção de vidros 
Onde, à margem de planos e de somas, 
Tenho remédio para os meus alvidros. 
O chá é forte e adstringente, 
O leite grosso sabe à ordenha, 
E até nos quadros vive gente 
À espera que a dona venha. 
Porque tudo nos tectos é coroa, 
No chão as traînes, os passinhos salpicados 
Como o vento ainda longe de Lisboa 
Escolheu a gaivota do balanço 
Que no cais engolfado melhor voa: 
Um vácuo, enfim, que o não será — tão logo 
Chegues no ar medido e a aço propulso: 
Por isso um pouco de fogo 
Bate sanguíneo em meu pulso, 
Pois o amor de quem espera 
É uma graça a vencer. 
Uma casa sem hera 
É como gente sem viver." 

Vitorino Nemésio, in "Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga"

segunda-feira, 24 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XIX

Hoje, Vasco da Graça Moura

"insinceridadequis-nos aos dois enlaçados 
meu amor ao lusco-fusco 
mas sem saber o que busco: 
há poentes desolados 
e o vento às vezes é brusco 

nem o cheiro a maresia 
a rebate nas marés 
na costa de lés a lés 
mais tempo nos duraria 
do que a espuma a nossos pés 

a vida no sol-poente 
fica assim num triste enleio 
entre melindre e receio 
de que a sombra se acrescente 
e nós perdidos no meio 

sem perdão e sem disfarce, 
sem deixar uma pegada 
por sobre a areia molhada, 
a ver o dia apagar-se 
e a noite feita de nada 

por isso afinal não quero 
ir contigo ao lusco-fusco, 
meu amor, nem é sincero 
fingir eu que assim te espero, 
sem saber bem o que busco." 


Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

domingo, 23 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - XVIII


Hoje, Trindade Coelho

"Aos Juristas
Irmãos da Confraria das Latada


E Reitor da irmandade das Latadas:
Pra maior esplendor da procissão
Mando que este ano sejam observadas
As regras que em seguida escritas vão:

Em primeiro lugar a Academia

Ceará mais cedinho neste dia.

De modo que na Feira às nove em ponto
Tudo esteja disposto, armado e pronto.

Quando houver poviléu suficiente
Parte o préstito logo em-continente.

As ruas que percorre no trajecto

Vão em prosa no fundo do prospecto.

E tudo muito sério, sem desordem.

Há-de então desfilar por esta ordem:

– Vai na frente, com certo intervalo, 

O grã’Jaime  montado num cavalo.

E uma audaz guarnição pretoriana

Com broquéis de cortiça e armas de cana.

Depois alguns irmãos com barretinas"


Trindade Coelho in "in Illo Tempore" 

sábado, 22 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XVII


Hoje, Sebastião da Gama


Nasci para ser ignorante 
mas os parentes teimaram 
(e dali não arrancaram) 
em fazer de mim estudante.

Que remédio? Obedeci. 
Há já três lustros que estudo. 
Aprender, aprendi tudo, 
mas tudo desaprendi.

Perdi o nome às Estrelas, 
aos nossos rios e aos de fora. 
Confundo fauna com flora. 
Atrapalham-me as parcelas.

Mas passo dias inteiros 
a ver um rio passar. 
Com aves e ondas do Mar 
tenho amores verdadeiros.

Rebrilha sempre uma Estrela 
por sobre o meu parapeito; 
pois não sou eu que me deito 
sem ter falado com ela.

Conheço mais de mil flores. 
Elas conhecem-me a mim. 
Só não sei como em latim 
as crismaram os doutores.

No entanto sou promovido, 
mal haja lugar aberto, 
a mestre: julgam-me esperto, 
inteligente e sabido.

O pior é se um director 
espreita p'la fechadura: 
lá se vai licenciatura 
se ouve as lições do doutor.

Lá se vai o ordenado 
de tuta-e-meia por mês. 
Lá fico eu de uma vez 
um Poeta desempregado.

Se me não lograr o fado 
porém, com tais directores, 
e de rios, aves e flores 
somente for vigiado,

enquanto as aulas correrem 
não sentirei calafrios, 
que flores, aves e rios 
ignorante é que me querem."



Sebastião da Gama in “Cabo da Boa Esperança” 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XVI

Hoje, Ruy Belo

Elogio da Amada


Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida 
secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados 
Vem sentada na nova primavera 
cercada de sorrisos no regaço lírios 
olhos feitos de sombra de vento e de momento 
alheia a estes dias que eu nunca consigo 
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso 
começa para além dela a ser longe 
A amada é bem a infância que vem ter comigo 
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos 
e mortes como antes nunca mais 
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria 
no limiar da nossa indiferença 
Os nossos átrios são para os seus pés solitários 
Já todos nós esquecemos a casa dos pais 
ela enche de dias as nossas mãos vazias 
A dor é nela até que deus começa 
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor 
Que importa sermos de uma só manhã e não haver em volta 
árvore mais açoitada pelos diversos ventos? 
Que importa partirmos num desmoronar de poentes? 
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão 
multiplicando-lhe a ausência que importa 
se onde pomos os pés é primavera? 


Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

quinta-feira, 20 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XV


Hoje, António Quadros

ODE AO DESEJO 


Desejo,
Desejo de outrem que não eu.
Caminho pela cidade nevoenta
E tudo é um reflexo abominável de mim.
Aquele homem apressado cruzando uma praça,
aquele garoto chorando com a cara entre as mãos,
aquele jovem gesticulando, veemente…
Tudo é eu num espelho deformado,
todo o universo é um sarcasmo,
a chuva goteja trágicas gargalhadas,
estou só,
sou só,
só dentro da imensa solidão,
só, ilha sem mar,
só, ilha sem continentes do outro lado do mar,
só, ilha sem naus que não levariam a parte alguma,
inútil,
estéril,
irreconhecível sem o espelho
inconcebível de uns olhos, outros,
apenas pressentidos.

É preciso,
é absolutamente necessário inventar uma presença,
é preciso imitar,
ó ardência, ó ímpeto, ó desejo,
é preciso imitar Deus e criar
ó desejo,
outrem que não eu fora de mim,
outro ser
diferente atraente ardente
que me faça quebrar o círculo fatal,
que me fale com outro silêncio,
que me conforte por ser apenas o sinal
de que a palavra ilha é uma abstracção,
outro ser que receba, ó desejo,
a força e o frémito e a substância e a vida
e o acto
que há em mim
e assim me cumpra enfim
não Deus mas criador
no êxtase pressentido do amor,
no fruir conceber ser,
na cisão legítima que te peço,
ó desejo,
ó verbo,
na enigmática cisão,
mãe da união
de todo o morrer e renascer.


in António Quadros, Imitação do Homem, Espiral, Lisboa, 1966, pp. 12-13.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XIV

Por hoje ser dia do Pai, fica um poema de Florbela

"Ter um Pai

Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!

Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!

Ter um Pai! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;

Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado!

Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!

Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!

Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!

Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!”"

Florbela Espanca in Poesia 1918-1930

terça-feira, 18 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - XIII


Hoje, Pedro Homem de Mello

"Canção à AusentePara te amar ensaiei os meus lábios... 
Deixei de pronunciar palavras duras. 
Para te amar ensaiei os meus lábios! 

Para tocar-te ensaiei os meus dedos... 
Banhei-os na água límpida das fontes. 
Para tocar-te ensaiei os meus dedos! 

Para te ouvir ensaiei meus ouvidos! 
Pus-me a escutar as vozes do silêncio... 
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos! 

E a vida foi passando, foi passando... 
E, à força de esperar a tua vinda, 
De cada braço fiz mudo cipreste. 

A vida foi passando, foi passando... 
E nunca mais vieste! "

Pedro Homem de Mello, in "Segredo"

segunda-feira, 17 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - XII


Hoje, Olavo Bilac

"Velhas ÁrvoresOlha estas velhas árvores, mais belas 
Do que as árvores novas, mais amigas: 
Tanto mais belas quanto mais antigas, 
Vencedoras da idade e das procelas... 

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas 
Vivem, livres de fomes e fadigas; 
E em seus galhos abrigam-se as cantigas 
E os amores das aves tagarelas. 

Não choremos, amigo, a mocidade! 
Envelheçamos rindo! envelheçamos 
Como as árvores fortes envelhecem: 

Na glória da alegria e da bondade, 
Agasalhando os pássaros nos ramos, 
Dando sombra e consolo aos que padecem!" 

Olavo Bilac, in "Poesias"

domingo, 16 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - XI

Hoje,  Natália Correia


De Amor nada Mais Resta que um OutubroDe amor nada mais resta que um Outubro 
e quanto mais amada mais desisto: 
quanto mais tu me despes mais me cubro 
e quanto mais me escondo mais me avisto. 

E sei que mais te enleio e te deslumbro 
porque se mais me ofusco mais existo. 
Por dentro me ilumino, sol oculto, 
por fora te ajoelho, corpo místico. 

Não me acordes. Estou morta na quermesse 
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie 
nem teus zelos amantes a demovem. 

Mas quanto mais em nuvem me desfaço 
mais de terra e de fogo é o abraço 
com que na carne queres reter-me jovem. 
Natália Correia, in “Poesia Completa” 

sábado, 15 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - X

Hoje, Mário de Sá-Carneiro

"QuasiUm pouco mais de sol - eu era brasa, 
Um pouco mais de azul - eu era além. 
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa... 
Se ao menos eu permanecesse aquém... 

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído 
Num baixo mar enganador de espuma; 
E o grande sonho despertado em bruma, 
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido... 

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama, 
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão... 
Mas na minh'alma tudo se derrama... 
Entanto nada foi só ilusão! 

De tudo houve um começo... e tudo errou... 
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim... - 
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, 
Asa que se elançou mas não voou... 

Momentos de alma que desbaratei... 
Templos aonde nunca pus um altar... 
Rios que perdi sem os levar ao mar... 
Ânsias que foram mas que não fixei... 

Se me vagueio, encontro só indícios... 
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas; 
E mãos de herói, sem fé, acobardadas, 
Puseram grades sobre os precipícios... 

Num impeto difuso de quebranto, 
Tudo encetei e nada possuí... 
Hoje, de mim, só resta o desencanto 
Das coisas que beijei mas não vivi... 

 

Um pouco mais de sol - e fora brasa, 
Um pouco mais de azul - e fora além. 
Para atingir, faltou-me um golpe de asa... 
Se ao menos eu permanecesse aquém... "


Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

sexta-feira, 14 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - IX

Hoje, Luis Vaz de Camões

"Quando não te Vejo Perco o SisoFormosura do Céu a nós descida, 
Que nenhum coração deixas isento, 
Satisfazendo a todo pensamento, 
Sem que sejas de algum bem entendida; 

Qual língua pode haver tão atrevida, 
Que tenha de louvar-te atrevimento, 
Pois a parte melhor do entendimento, 
No menos que em ti há se vê perdida? 

Se em teu valor contemplo a menor parte, 
Vendo que abre na terra um paraíso, 
Logo o engenho me falta, o espírito míngua. 

Mas o que mais me impede inda louvar-te, 
É que quando te vejo perco a língua, 
E quando não te vejo perco o siso. "


Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

quinta-feira, 13 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - VIII

Hoje, Jorge de Sena

"Amo-te Muito, Meu Amor, e TantoAmo-te muito, meu amor, e tanto 
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda 
depois de ter-te, meu amor. Não finda 
com o próprio amor o amor do teu encanto. 

Que encanto é o teu? Se continua enquanto 
sofro a traição dos que, viscosos, prendem, 
por uma paz da guerra a que se vendem, 
a pura liberdade do meu canto, 

um cântico da terra e do seu povo, 
nesta invenção da humanidade inteira 
que a cada instante há que inventar de novo, 

tão quase é coisa ou sucessão que passa... 
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira, 
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça." 

Jorge de Sena, in “Poesia, Vol. I”
 

quarta-feira, 12 de março de 2014


Um poeta e um poema por dia - VII

Hoje, Herberto Helder

"Sobre um PoemaUm poema cresce inseguramente 
na confusão da carne, 
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, 
talvez como sangue 
ou sombra de sangue pelos canais do ser. 

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência 
ou os bagos de uva de onde nascem 
as raízes minúsculas do sol. 
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis 
do nosso amor, 
os rios, a grande paz exterior das coisas, 
as folhas dormindo o silêncio, 
as sementes à beira do vento, 
- a hora teatral da posse. 
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. 

E já nenhum poder destrói o poema. 
Insustentável, único, 
invade as órbitas, a face amorfa das paredes, 
a miséria dos minutos, 
a força sustida das coisas, 
a redonda e livre harmonia do mundo. 

- Em baixo o instrumento perplexo ignora 
a espinha do mistério. 
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne." 

Herberto Helder

terça-feira, 11 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - VII

Hoje, Guerra Junqueiro  

"MorenaNão negues, confessa 
Que tens certa pena 
Que as mais raparigas 
Te chamem morena. 

Pois eu não gostava, 
Parece-me a mim, 
De ver o teu rosto 
Da cor do jasmim. 

Eu não... mas enfim 
É fraca a razão, 
Pois pouco te importa 
Que eu goste ou que não. 

Mas olha as violetas 
Que, sendo umas pretas, 
O cheiro que têm! 
Vê lá que seria, 
Se Deus as fizesse 
Morenas também! 

Tu és a mais rara 
De todas as rosas; 
E as coisas mais raras 
São mais preciosas. 

Há rosas dobradas 
E há-as singelas; 
Mas são todas elas 
Azuis, amarelas, 
De cor de açucenas, 
De muita outra cor; 
Mas rosas morenas, 
Só tu, linda flor. 

E olha que foram 
Morenas e bem 
As moças mais lindas 
De Jerusalém. 
E a Virgem Maria 
Não sei... mas seria 
Morena também. 

Moreno era Cristo. 
Vê lá depois disto 
Se ainda tens pena 
Que as mais raparigas 
Te chamem morena! "


Guerra Junqueiro, in 'A Musa em Férias'

segunda-feira, 10 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - VI


Hoje, um poema de Fernando Pessoa ou, melhor, do seu heterónimo Álvaro de Campos

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondívelmente parasita,
Indesculpávelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infâme da vileza.
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

domingo, 9 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - V

Hoje, deixo-vos um poema de Eugénio de Andrade

"Entre os teus lábios

Entre os teus lábios 
é que a loucura acode, 
desce à garganta, 
invade a água. 

No teu peito 
é que o pólen do fogo 
se junta à nascente, 
alastra na sombra. 

Nos teus flancos 
é que a fonte começa 
a ser rio de abelhas, 
rumor de tigre. 

Da cintura aos joelhos 
é que a areia queima, 
o sol é secreto, 
cego o silêncio. "


Deita-te comigo. 
Ilumina meus vidros. 
Entre lábios e lábios 
toda a música é minha."


Eugénio de Andrade



sábado, 8 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - IV

Hoje, dia internacional da Mulher, um poema de David Mourão-Ferreira: 

"Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol, 
que é feito de ternura amarrotada, 
da frescura que vem depois do sol, 
quando depois do sol não vem mais nada... 

Olho a roupa no chão: que tempestade! 
Há restos de ternura pelo meio, 
como vultos perdidos na cidade 
onde uma tempestade sobreveio... 

Começas a vestir-te, lentamente, 
e é ternura também que vou vestindo, 
para enfrentar lá fora aquela gente 
que da nossa ternura anda sorrindo... 

Mas ninguém sonha a pressa com que nós 
a despimos assim que estamos sós! "

David Mourão-Ferreira, in "Infinito Pessoal"