sábado, 15 de março de 2014

Um poeta e um poema por dia - X

Hoje, Mário de Sá-Carneiro

"QuasiUm pouco mais de sol - eu era brasa, 
Um pouco mais de azul - eu era além. 
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa... 
Se ao menos eu permanecesse aquém... 

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído 
Num baixo mar enganador de espuma; 
E o grande sonho despertado em bruma, 
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido... 

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama, 
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão... 
Mas na minh'alma tudo se derrama... 
Entanto nada foi só ilusão! 

De tudo houve um começo... e tudo errou... 
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim... - 
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, 
Asa que se elançou mas não voou... 

Momentos de alma que desbaratei... 
Templos aonde nunca pus um altar... 
Rios que perdi sem os levar ao mar... 
Ânsias que foram mas que não fixei... 

Se me vagueio, encontro só indícios... 
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas; 
E mãos de herói, sem fé, acobardadas, 
Puseram grades sobre os precipícios... 

Num impeto difuso de quebranto, 
Tudo encetei e nada possuí... 
Hoje, de mim, só resta o desencanto 
Das coisas que beijei mas não vivi... 

 

Um pouco mais de sol - e fora brasa, 
Um pouco mais de azul - e fora além. 
Para atingir, faltou-me um golpe de asa... 
Se ao menos eu permanecesse aquém... "


Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

1 comentário:

  1. " Num ímpeto difuso de quebranto,
    Tudo encetei e nada possuí...
    Hoje, de mim, só resta o desencanto
    Das coisas que beijei mas não vivi..."

    Como diria um amigo blogger, de longa data: ' Mário de Sá-Carneiro, é meu irmão.'

    Um beijo e um abraço, António.

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